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Artigos jurídicos

ENTRE O APITO E A JUSTIÇA DESPORTIVA: RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR DA ARBITRAGEM POR ERROS NOTÓRIOS

21 de outubro às 11:00

Por Paulo Dantas, Procurador-Geral do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol (STJD). Advogado. Doutor em Direito (UFRGS).

Erros notórios da equipe de arbitragem podem mudar o rumo de partidas decisivas e do próprio campeonato. Casos recentes evidenciam que mesmo com a tecnologia do VAR, graves falhas humanas persistem e exigem respostas institucionais adequadas. Nesse contexto, o debate sobre como lidar com esses erros grosseiros – reconhecidos pela própria comissão de arbitragem da entidade de administração do futebol – está mais atual do que nunca.

No avançado estágio de institucionalização da Justiça Desportiva brasileira, não cabe acolher interpretações jurídicas que criem uma espécie de imunidade disciplinar para árbitros, assistentes e membros da equipe de arbitragem. O próprio Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) foi claro ao incluí-los no rol de jurisdicionados.

A ideia bastante difundida de que árbitros só responderiam disciplinarmente em casos de “erro de direito” – desconhecimento ou má interpretação das regras, diferentemente do “erro de fato”, que se limita à interpretação ou observação equivocada dos lances – acaba criando, na prática, uma blindagem disciplinar indevida.

Essa leitura açodada do artigo 259, caput, do CBJD impede a Justiça Desportiva de avaliar condutas claramente incompatíveis com o dever funcional, classificadas como erros notórios — falhas que qualquer profissional razoável não cometeria nas mesmas condições, ainda mais no presente contexto de acentuada profissionalização da indústria do futebol.

Essa confusão hermenêutica na interpretação e aplicação das normas do direito desportivo brasileiro explica por que os tribunais desportivos historicamente têm sido eficientes ao julgarem atletas, técnicos e dirigentes, mas raramente analisam infrações cometidas por árbitros e integrantes do VAR — criando, na prática, uma imunidade disciplinar incompatível com o estágio atual de autonomia e capacidade técnica da Justiça Desportiva brasileira.

O caput do artigo 259 do CBJD trata da responsabilização disciplinar, sendo aplicável a erros notórios, de qualquer natureza, que revelem falhas grosseiras na aplicação das regras do jogo, em patamar incompatível com o que se espera legitimamente da atuação profissional da equipe de arbitragem. Não se exige, para a análise disciplinar, a revisão das decisões de campo, que devem ser preservadas.

Exigir a qualificação do “erro de direito” como requisito para enquadramento das condutas da arbitragem nas infrações disciplinares do CBJD contamina o julgamento instaurado a partir das denúncias ofertadas pela Procuradoria com uma discussão estranha ao tema: a anulação da própria partida.

A impugnação de partida é outro instituto, relacionado ao § 1º do mesmo artigo 259 do CBJD, que depende da demonstração de erro de direito e pode, em hipóteses excepcionalíssimas, levar à anulação do jogo, como também ocorre nos casos de fraude, má-fé ou corrupção. São, portanto, temas distintos, com pressupostos e consequências diferentes. Essa distinção é fundamental para preservar tanto a integridade das competições quanto a estabilidade dos resultados – afinal, o jogo se ganha no campo (pro competitione).

A responsabilização disciplinar de árbitros e VARs não busca reescrever o placar, mas afirmar deveres funcionais mínimos para quem exerce função essencial à credibilidade das competições. Como exemplo, a omissão do VAR em convocar revisão obrigatória em lances de pênalti claro e cartão vermelho direto afronta o Protocolo do VAR e constitui infração disciplinar. Ao silenciar diante de erro notório do árbitro principal em campo, o VAR deixa de cumprir seu dever funcional, permitindo a consolidação de uma injustiça contra o espírito desportivo (fair play) e gerando um dano à imagem da competição.

Não se sustenta a tese de que esses episódios estariam protegidos pela discricionariedade técnica da arbitragem. A liberdade interpretativa não é absoluta. Ela cessa quando a falha é tão patente que ultrapassa os limites do razoável, caracterizando negligência grave ou imperícia manifesta.

Reitera-se: a responsabilidade disciplinar da equipe de arbitragem perante a Justiça Desportiva não deve ser sinônimo de anulação de pênaltis, gols e partidas. As decisões de campo devem ser preservadas. A revisão de resultados somente deve ser admitida em casos excepcionalíssimos de erro de direito relevante ou de fraude, má-fé ou corrupção.

Responsabilizar disciplinarmente a equipe de arbitragem não é punir o equívoco humano comum, e sim aqueles erros notórios que destoam completamente do nível de profissionalização atualmente demandado mundo afora pela comunidade de apaixonados pelo futebol. A Justiça Desportiva e a arbitragem são pilares complementares da credibilidade do jogo: ao responsabilizar de forma justa e proporcional, não se busca confronto, mas o fortalecimento mútuo de instituições essenciais para a integridade das competições.


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